5 de março de 2009

FRIO



Foto tirada da internet


Certas lembranças surgem e são sensações muito presentes. Chegam a doer. Lembro da minha operação nas amígdalas. De dançar e ir feliz da vida para o hospital. Corria e pulava como se estivesse numa festa com palhaços, bolas e bandinha, só porque haviam prometido todos os sorvetes que eu conseguisse tomar. E cumpriram a promessa. Mas a dor era tanta ao engolir, que não consegui comer nenhum. A massa cor-de-rosa com pedacinhos de morango arranhava minha garganta e ia rasgando faringe, laringe, traquéia e formando um bolo disforme no estômago. Naquele dia chovia fininho e frio.
Desde então as chuvas não se afastaram mais. Penso nos disquinhos de vinil de todas as cores que contavam histórias infantis. Lá fora chovia insistente. Eu me aquecia ouvindo musiquinhas e fantasiava um colorido solitário. Mas o frio...
Depois, cresci. As chuvas eram, então mais intensas e as gotas batiam geladas na minha alma de inverno carioca. Inverno pouco, dirão alguns veementemente. Tá, concordarei a contragosto. Mas não explico que a alma é imensa. Nem mostro onde ficam todos os frios do mundo. Todas as neves e granizos. Nem conto que na minha alma adolescente cabia todo o frio da Sibéria.
Ainda chove e o vento bate no toldo da varanda com brutalidade de namorado bêbado. As venezianas mexem-se descontroladas e meus gatos ressonam nas almofadas. Afago um por um com melancolia e eles reclamam miando entediados e fogem da minha súbita demonstração de afeto.
Abro o portão e olho a cachoeira de chuva e barro que despenca ladeira abaixo. O vento é tanto que faz voar o guarda-chuva. Olho surpresa e ele sobe como um balão, revolve-se numa terçã louca, contorcendo-se até não sobrar mais nada.
Rodopio junto e caio no jardim, tonta e enjoada. Meu corpo afunda inerte na grama molhada. As gotas escorrem do meu rosto e o frio se descola do meu coração. Deve ser bom morrer assim. Morrer deve ser bom assim. E reconheço um misto de dor e fuga ao sentir a chuva gelada penetrando nos ossos e enrugando a pele.
Volto para dentro molhada como um pinto. Expressão engraçada como se pinto fosse peixe. Não é pato que nada? Pinto. Pinto. Pinto! Tiro a roupa deixando-a amontoada no meio do caminho e, com olhar vitorioso, gozo a minha rebeldia. Meu desfazer de regras. Meu não listar obrigações. Não. Hoje só tricoto os fios do meu cobertor de lembranças.
No espelho olho meu corpo - já não tão bonito - e o reflexo mostra todos os amores que recusei, toda a satisfação que senti ao fazer um homem sofrer do meu Não. Um sim encolhido no meio do peito e jogado na cara mesmo, com som de Não!. Um Não arrancado da alma grande e fria. Para quê? Para olhar meu corpo agora flácido no espelho lascado? Meu corpo seco de Não?
No criado-mudo, o copo com o líquido espesso, cor de rosa. Bebo rápido e nem penso. O gosto adocicado e a forma como ele invade sôfrego a minha garganta, me lembra o sorvete de morango.
Deito na cama. Os lençóis cheiram gostoso. Um cheiro de alecrim. Apalpo todo o meu corpo com a satisfação do reconhecimento e já com saudade. E enquanto aguardo, sinto um rodamoinho de sentidos antigos e cada vez que afundo, mais sinto frio. A chuva lá fora parece diminuir. O toldo não bate tão forte e tudo fica mais longe, as cores mais desbotadas... ou sou eu que me afasto?
É a ultima vez que sinto o frio intenso. O cheiro de alecrim some pouco a pouco... as gotas da chuva batem no corpo que não é mais meu... ou bateram... não me lembro mais. Foi há tanto tempo...

4 de março de 2009

EM ALGUM LUGAR ANOITECE


Angel on a Red Horse
by Sharon McCullough


Durante uma época há muito ida, participei da "Confraria dos Escritores" (ou "Confraria dos poetas" nao lembro bem - me ajude, Mhel!!) Um dos exercícios era escrever um poema a partir do título de um poema de um outro participante. Este título é de um poema da Maria Helena Bandeira. Estou convindando-a, agora, a postar o poema cujo título gerou esta poesia (da mesma forma que gerou outros poemas meus que acho lindos (que a modéstia não me falte hohoh).


Mas é quando anoitece em mim
que eu liberto meus mistérios,
engulo os sapos, as lagartixas
regurgito as luas e os sagitários
salpico de estrelas meu corpo gélido.

Quando anoitece em mim
Meu coração pula como um louco
Tropeça, engasga
Desdiz e se desmancha
Quase sempre por tão pouco.

É quando mais me avisto
Minha máscara se desgasta
Mais em nuvem me desfaço
Mais da sua pele me deslumbro
Mais corro para o seu laço.

Em algum lugar anoitece,
Anoitece no Japão
Na Tunísia e no Paquistão.
E quando anoitece em mim,
essa noite me arrebata

Eu minto, me despeço, fujo, finjo, me cubro
e me abro...
quanto mais você me nega.

Daisy Melo